quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Janelas casadoiras

Quis o Destino, Deus – talvez ambos sejam o mesmo Ser – ou ninguém desejou e o que temos é uma mera coincidência, mas o fato é que as quatro moças casadoiras moravam lado a lado. Seus respectivos lares formavam um quadrado. No número 18 encontrava-se Flor. Ao seu lado, no 20, habitava Luciana. Em frente a Flor, no 21, residia Ludmila e na morada ao lado, número 23, ficavam os belos lábios de Maria Eduarda.
Flor tinha pele morena. Quando falo morena quero dizer morena mesmo. É bom esclarecer este ponto, pois há algum tempo passou-se a utilizar a palavra “morena” para definir mulata ou negra. Estranho. Contudo, não me submeterei a tal reducionismo lingüístico. O maior atrativo de Flor eram suas ancas. Não que seus seios fossem desprezíveis ou seu rosto fosse feio. De forma alguma. Mas as ancas ofuscavam os demais atributos. Também não pretendo insinuar que os seios ou a face fossem algo de especial. Não. Não eram atraentes nem repugnantes. Eram simplesmente... ok.
Assim como o traseiro de Luciana. Sem prejudicar, a derrier de Lu tampouco a ajudava. Serei claro em poucas palavras, aproveitando a descrição de Flor para resumir a vizinha à sua esquerda: as mamas de Luciana estavam para seu traseiro assim como as nádegas de Flor estavam para seus seios, ou seja, o que uma tinha de bom em cima a outra o possuía embaixo. Juntasse as duas numa só... que piteuzinho.
Maria Eduarda tinha como principal atrativo lábios rosados e rosto de boneca. Eram lábios meigos. Lábios de senhorinha. Lábios de afago. Lábios de estrela pornô. Ah sim, de estrela pornô. Por favor, não veja qualquer contradição em minhas palavras. É notória a excitação que mulheres de aparência virginal, mas com grande libido, provoca nos homens. É velho o fetiche da colegial. Pois lá ficava Duda, em sua janela, mostrando à audiência rosto de donzela, róseos e relativamente acolchoados lábios, com seu olhar lânguido e simultaneamente sonso, provocando suspiros. Apaixonados nos ingênuos, de lamento por desejo não realizado nos tarados.
Ludmila... bem, Ludmila... era Ludmila. Nenhum atrativo. Não era feia tampouco. Talvez melhor se o fosse, pois assim se destacaria de alguma forma. Mas sequer isso. A típica pessoa que se mistura à multidão. Uma sem graça. Nada, absolutamente nada na sua aparência a ser ressaltado.
Essas eram as moças casadoiras que se debruçavam nas janelas de suas respectivas casas, disputando a atenção dos solteiros e viúvos precoces que por lá passavam. Não se fale em divorciado. Desquitado naquele lugar nos tempos em que se desenvolve esta história era um malogrado. Se um casamento fracassa o que são os nubentes senão fracassados? Raras exceções hão de ser relevadas, como no caso de Túlio, cuja esposa, mostrando ser depravada e indigna, praticamente uma mulher-dama, pediu-lhe que a penetrasse pela entrada de serviço. Mulher assim não serve para esposa. Muito boa, sem dúvida, para as necessárias diversões extraconjugais nos cabarés, mas jamais para se ter em casa, de aliança no anular esquerdo.
A competição sempre se deu de forma discreta e tácita. Nada de grandes atrevimentos, até porque moças sérias não são dadas a tal. Além disso, normalmente o potencial noivo escolhia uma delas logo após a primeira caminhada e se plantava debaixo de sua janela. Diferente, entretanto, ocorreu com Eduardo, que Maria Eduarda argumentava ser xará, o que a colocava em posição de vantagem, afinal, ela tinha alguma coisa em comum com o galã. Alegava que o fato de “Maria” acompanhar “Eduarda” não lhe tirava o parentesco de nome, afinal, ninguém deixa de ser xará de outro por ter sobrenome diferente. Por que a regra seria diversa quando se refere a um pré-prenome? Primeiro nome descartável, aliás, afinal, de que serve “Maria”? Ninguém é “Maria”. Toda Maria Fulana é conhecida como Fulana ou tem um apelido que deriva do segundo nome, assim como Duda.
Vamos às virtudes de Eduardo: empreendedorismo que o levou a tornar-se rico aos vinte e dois anos, deixando para trás um passado de classe média baixa que seu pai lhe legara; juventude; beleza; arrogância na correta medida.
A citada arrogância se confundia com uma certa malandragem, também bem temperada, no grau do romantismo. Seria, entretanto, o suficiente para que as mães o esconjurassem não fosse ele bem sucedido comerciante. Mas as filhas apenas se encantavam com aquele jeito matreiro, deixando-se muitas vezes enganar com prazer. Acima do ciúme que cada uma das quatro sentia das outras, por terem que dividir os cortejos de Eduardo, prevalecia a vontade de ser a melhor, a conquistadora, a vencedora. O orgulho subjugava o ciúme. Neste ponto não havia sequer contenda, mas completa submissão de um sentimento a outro. Maior do que a raiva que Eduardo causava ao sair de uma janela, onde acabara de entregar um belo regalo, para deixar outro na casa em frente, era a sede de vitória. Vitória. Vitória era o fim. Quais os legítimos meios para alcançá-la? (Nenhum, respondeu Dona Vitória, respeitável senhora que nada tem a ver com a trama)
Regras sociais são normalmente nebulosas. Até onde se pode avançar na busca por um fim? O que diferencia uma moça determinada de uma oferecida? Onde, afinal? Onde reside a fronteira?
Seja onde for a cerca foi aos poucos sendo deslocada pelas quatro vizinhas. As mutações lentas não são claras e percebidas, então sequer a consciência de qualquer delas gritou. Também se quedou silente a vizinhança, incapaz de notar aquele aumento paulatino no nível de oferecimento por parte das quatro donzelas. Precisou um forasteiro passar por lá e narrar-me o que viu, pois caso contrário os atos descarados passariam despercebidos. Pois, então, conto-lhe, prezado leitor, o nível de baixeza moral alcançado pelas casadoiras, beirando a ignomínia. Espero não chocá-lo.
Maria Eduarda foi a primeira a ultrapassar o limite do tolerável e borrar sua boca com grossos batons vermelhos. Em plena luz do dia, uma moça que se diz direita desonra a família expondo seus belos lábios na sacada, tingidos por batom típico de mulher da vida.
Vendo o efeito provocado por aquele utensílio, Maria Eduarda não se fez de rogada e logo lançou mão de sua maior arma. Para tal, ao contrário da vizinha, não acrescentou, apenas tirou. Reduziu consideravelmente a quantidade de pano de sua roupa, passando a exibir abundantes decotes. Para completar a (confesso, deliciosa) cena de depravação, apoiava os seios no parapeito, fazendo com que eles se acumulassem na extremidade do degolo. Uma descaração. E um desbunde!
Seguindo a mesma trilha, Flor largou a discrição de lado. Passou a fazer algo que não era possível dizer que fosse por acaso, tornando inviável sonegar ardente interesse no rapaz, e tornou a guerra virtualmente declarada. Passou a subir num banquinho junto à janela para bem expor suas ancas. Seria uma cena ridícula, não fosse tão bela a carne, uma mulher com a cabeça tocando a parte superior da janela e os quadris dois palmos acima do parapeito.
Ludmila, sem destaque ou atrativo, assistiu passiva a escalada de ousadia de suas rivais. Após alguns dias matutando chegou à conclusão de que, se a tela era desinteressante, cabia-lhe caprichar na moldura. Enfeitou, então, sua janela. Leves e coloridos lenços de seda, ornados com argolas prateadas, passaram a cercar o busto de Ludmila. Eduardo, interessado, perguntou-lhe sobre detalhes da decoração e pediu-lhe a mão. Das quatro concorrentes, a senhorita do 21 foi a única que externalizou seu interior. Ao enfeitar a janela o fez em companhia dos seus valores, seus gostos, suas preferências. Através de ação ela permitiu que sua essência se manifestasse. Foi o único momento em que qualquer daquelas meninas fez isso. As rígidas normas sociais que vigoravam não permitiam que sequer nos diálogos as casadoiras expusessem seus desejos e frustrações. Moça direita não se abre com um fulano que apareça em sua janela, mesmo que interessante, pois ainda assim ainda é um fulano na janela. Aliás, moça direita esconde os dentes, recatada, pouco fala. Pede a bênção ao pai pela manhã e beija a mão da mãe em boa noite. Janela em poucos momentos e de preferência de forma discreta e na ausência do pai. Mãe tolera por alguns minutos, mas pai atencioso não permite filha na janela. Pois, pouco falando e mais ouvindo e lançando comportados, porém interessados sorrisos, donzela não expõe suas entranhas aos pretendentes, que só vão conhecê-las com a convivência pós-casamento. Entretanto, Ludmila o fez. E fez muito bem, pois realizado em perfeita consonância com a etiqueta. Sem qualquer ato desabonador, que fosse de encontro ao necessário recato, a moça mostrou ao pretendente que tinha muitos atrativos, mas estavam escondidos sob aquela couraça sem sal que a envolvia. As demais, entretanto, apenas continuaram exibindo - com maior ênfase, não se negue - já conhecidas virtudes físicas, ou seja, naquele momento em que a rixa acirrou-se foram incapazes de apresentar algo novo, uma surpresa qualquer.
Seis meses depois Ludmila e Eduardo casaram-se e naquela janela nada mais se viu. Apenas se ouvia, caso se passasse bem em frente, prazerosos ruídos. Flor passou a roer a unha.

Colaborador:
Renato Amado é escritor, autor do romance Vale do Rio Preto.Publicou os contos "O Flaneur" e "Amor" respectivamente nas antologias "Humano, Humano Demais" e "Agreste Utopia". Colaborador no livro de turismo ´Rio de Janeiro: uma visão elegante`
Sobre "Renato Amado": http://www.renatoamado.blogger.com.br/
Sobre "romance Vale do Rio Preto": http://www.editoramultifoco.com.br/catalogo2.asp?lv=50 .
(Rio de Janeiro)

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