sábado, 21 de fevereiro de 2009

Do Porquê Freud Não Estar De Todo Errado

A menina se formava no pré-II. Foi escolhida para ser oradora da turma no ato solene de formatura. Difícil saber o que uma menina de seis anos falaria num discurso de formatura. Pior ainda é o uso da palavra ao ato de passagem para a nebulosa primeira série. Mas essas questões não vêm ao caso. O que importa é que a menina fantasiava mundos fantásticos sobre a noite. O que seria uma formatura? Apesar de não saber dizer formatura é isso e aquilo, a menina já tinha preenchido bem a palavra na sua vida. Era algo muito grande, em que acontecem coisas de sonhos, com tudo simultaneamente colorido e brilhante, mais que o gel gliter que a cabeleireira Irene passou nos seus cabelos, para ficasse à altura do que é tão grande. Mas o mundo é injusto. Até para os pequenos. O dentão de cima e da frente lhe cai dias antes do evento. Nem preciso dizer que a menina fica com um enorme buraco na boquinha. Tristeza fina e funda, que dá dor em cima da barriga e ganas de desistir. Para se consolar, a menina abraçava junto seu cachorro filhote e balançava bastante com ele no Bandeirante, pra longe de bocas desdentadas. Não adiantou explicar que era um dente de leite. Mesmo que fosse de chocolate, a menina nunca perdoaria o maldito que lhe faltou bem no momento do tão grande. Ela tinha esse veredito muito firme e claro. Por maior que seja a dor, ainda é preciso viver. Ela se arrumou com ela mesma e inventou o jeito. A formatura era evento tão importante que foi antecedida por um jantar no Pinheiral. Melhor macarronada do mundo, e feita por japoneses. A menina se esbaldou com o vermelho, o suficiente para esquecer da ausência que carregava. Na noite do grande, estava um jasmim. Que susto ao perceber que já sabia como tudo iria acontecer, até nos detalhes furta-cor, nas danças frenéticas dos amiguinhos, na euforia de estar num palco tão mais alto que toda a cidade atônita. Mas, a maior alegria da menina, maior até que o palco, era estar cumprindo à risca a regra de ouro de como esconder a sua falta. Assim ela pensava, a pobre. Foi só meses depois, quando chegou o álbum da formatura, que todo o orgulho volveu-se espelho esfarelado. Em meio a tantos lábios comprimidos para ocultar a solidão, a menina, a macarronada e seu vazio, tudo junto dentro da boca. Era tão vermelho, tanta boca aberta e tamanho vazio. Inspira expira síncope. Não bastasse essa nojeira, veio o golpe fatal na auto-estima: toda a família enfileirada em pé e, sozinha na linha da frente, a menina, com olhos para cima de contemplação e um sorriso-ventania. Era só a janela. Espaço que, de tão intenso, fez-se duro pelo resto dos instantes seguintes da pequena existência.

Anaê Matsushita Veronezi diz que não é escritora, mas eu digo que ela é. Pode ser encontrada em alguma ladeira de Santa Teresa ou dentro de algum livro da Clarice.
(Rio de Janeiro - Santa Teresa)

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