quarta-feira, 6 de maio de 2009

EM TODAS AS PORTAS

Abrirás mão de qualquer lógica ao desceres a escada, pulando de dois em dois os degraus. Já na rua, tentarás entender o porquê da ligação recém-recebida, pensando que não é natural alguém terminar um relacionamento ? e não importa a quantas ande esse relacionamento ? por telefone, no meio do expediente. Saberás pelos raios de sol que espalhar-se-ão por tua nuca que o dia passa um pouco da metade e, rápida, entrarás no meio do redemoinho de pessoas, fazendo parte da turba barulhenta e senil, constatando que aquele é um péssimo horário para quem tem pressa. Essa cidade é o cu do inferno, pensarás todas as vezes que bateres teus ombros contra outros ombros ? serão muitas vezes ? e não deixarás de murmurar sobre a mania dos velhos ? o senhor poderia dar licença, são três da tarde, meu senhor, não dá pra ficar com esse passo de tartaruga às três da tarde, entende? Essa mania dos velhos de não fazerem absolutamente nada em suas rotinas de casa, supermercado, banco, aposentadoria, mas insistirem em galgar quadras feito múmias em tua frente. E justo nesse dia não bastou receber um telefonema, precisou ouvir o ar solene de reclame de rádio ? tom que o outro sempre usava quando queria fazer um anúncio. Mesmo consciente que o outro não a via, fechou os olhos, pois era sempre assim que fazia para que ele não percebesse que na realidade estavas a revirá-los. Retinas e pupilas volteando no movimento circular uniforme. Feito um boi que rumina capim queimado, ainda estarás remanchando as palavras ouvidas ao ser atropelada ? ou atropelar uma senhora de quadril avantajado, não conseguindo conter uma expressão de espanto? putamerda, vaca estúpida! Assim como não conseguirás deixar de perceber a miséria que toma conta das ruas, mesmo não se dando conta que talvez essa miséria seja, por um segundo, maior que a tua.As mesmas pupilas e retinas que usaste para traçar o movimento circular uniforme te chamarão atenção para a quantidade de crianças debaixo das marquises, esses negrinhos, como dirás para ti mesma. A rua lotada desses negrinhos, que enxotarás, afinal tem que chegar logo, ninguém recebe um telefonema como aquele e fica blasé. Responderás para um dos meninos, não quero engraxar o sapato, faça-me o favor, engraxar sapato? lá tens tempo de engraxar qualquer coisa? Balançarás a cabeça ao dar-te conta que deveria, isso sim, ter comprado a graxa. Uma lata de graxa bem cheia, e ao encontrar com o outro poderia dizer: está aqui ó, te lambuza, te espalha, te unta com essa graxeira em que transformaste a minha vida. Assustada, quase cairás ao tropeçares nas pernas de uma índia que enrolada em uma manta bate com compassos duros uma lata na calçada. A cobrirás com o mesmo olhar que destinaste aos meninos? índia imbecil, levanta desse chão e volta pra tribo, minha filha ?, mas, logo a esquecerás, voltando tua atenção para a senhora que, propositadamente, no teu pensamento, impede-te de dobrar uma esquina? a senhora poderia por gentileza parar de me cutucar com essa sombrinha? Inflada de razão, não entenderás porque com o dia tão claro essas gordas insistem em andar empunhando sombrinhas? verdadeiras armas, dirás em voz alta. Mas a gorda também passará a ser um quadro de passado quando colocares a culpa nele por estar no meio desse povinho de merda. Entrarás na rua arborizada? o desejo de alcançar teu objetivo é tão grande que nem repararás como agradecido ficou teu corpo ao livrar-se do sol. E, na rua, aos traços dos teus passos, os jacarandás se curvarão, as sombras mais sombras do que nunca, acompanhando-te como se soubessem que teu destino, por fim, está próximo. Perderei toda tarde de trabalho, pensarás enquanto passa pela última sombra e vislumbra teu próprio reflexo no vidro da porta a tua frente. É uma porta bastante alta, e teu reflexo também será bastante longo, uma imagem retorcida de ti, repuxada, os braços pendentes ao longo do corpo e uma enorme testa, perdendo-se contra o marco pesado.
* * *
Por um instante esquecerás que ele ligou com a voz grave que mais parecia desses cd´s de bíblia, ou que tu parecias enlouquecida pelo centro, despencada pelo desespero de chegar no exato ponto em que te encontras. Sumirá voz, rua, sombras e jacarandás porque ficarás como mármore olhando para essa pessoa distorcida e com a cabeça tão grande que precisaria de todas as idéias do mundo para preencher apenas metade. Olharás para esse simulacro ? mesmo não tendo a menor idéia do que é um simulacro, mas tudo bem, já que os significados deixaram de ter qualquer importância no mesmo instante em que desligaste o telefone e abriste a porta do escritório e saíste pela rua, deixando-te envolver e fazer parte do redemoinho formado pelos edifícios, as pessoas, os ruídos, os meninos que vendem vale-transporte. A imagem, ou um Tu quase sem olhos, não te assustará, mas não poderás negar a fisgada no estômago que fará com que contraias de leve os músculos do queixo, ao perceber que esse comprido Tu poderia significar o suposto reaparecimento de uma pessoa morta. Isso porque no fundo sabes o quanto alguém pode? e precisa? morrer muitas e muitas vezes para conseguir viver no turbilhão que, mesmo não querendo, ajuda a constituir.Velarás esse Tu, ainda parada na calçada. Velarás no silêncio só destinado às grandes perdas. E como é costume nos lentos cenários funestos, recordarás de Sua vida? uma vida que também foi tua. Cavoucarás cada centímetro de lembrança, achando lindo como o outro ria ? e todo ele ria, até os olhos. Achavas também bonita a boca e nesses momentos chegavas mais perto, buscando a língua e a beijava, mordendo-lhe os lábios. O reflexo retorcido parecerá rolos opacos de fumaça quando deres dois passos à frente, erguendo a mão. Desejarás dissolvê-lo com o toque dos teus dedos, fazendo um esforço muito maior para alcançar a porta. Muito maior do que o esforço que normalmente as pessoas fazem para abrir ou fechar portas vazias. Mas não chegarás a alcançá-la. Será a porta que irá de encontro a ti, tocando não apenas teus dedos como toda a mão e parte do braço. Verás, muda, o corpo que dela sairá, um senhor bem vestido que será educado, pedir-te-á desculpas e partirá ? terás tempo suficiente para saber que será mais um a fazer parte da turba e talvez os bons modos o abandonem na primeira esquina. E quando a porta voltar ao lugar, não verás aquele Tu em espiral, mas um muito mais parecido contigo. A menos de um palmo deste, tua respiração formando círculos embaçados em sua boca, vislumbrarás o desvelo de uma simples verdade. Que passará rápida como esses lenços leves que caem dos pescoços das moças? então, precisarás estar bastante atenta para perceber que todas as portas guardam uma porção dessas pessoas que deveriam estar mortas. Todas as portas e seus reflexos são potencialmente lugares para supostos reaparecimentos destas pessoas? ou deste Tu. O reflexo te olhará nos olhos. Porque és apenas uma mulher suada por correres tanto, engolirás em seco os goles de certeza que Ele está a mostrar. Que perderás de vista o outro, assim como te perderam de vista todos aqueles que te amaram. Que teu caminhar apressado descompassou não apenas a simetria da tarde de trabalho, mas também o futuro bastante ingênuo que acreditavas existir. E saberás, pelo reflexo que agora te fala, que o telefonema foi apenas mais um telefonema. Sobretudo, quase engasgarás ao ver que mesmo que invadas o corredor a tua frente, que suba de dois em dois os degraus da escada, será só mais um sepulcro a violar. Uma coisa morta, que poderá te dar prazer pela descoberta, mas nunca deixará de ser a coisa morta que já é.Então, como se não houvesse mais nada o que fazer ali, resolverás retroceder. Ainda te encararás refletida na porta que não ousaste abrir. A memória do outro persistirá, e sentirás que ela escorrega entre as mais variadas lembranças procurando o melhor lugar para acomodar-se e ser eterna. Estarás tão perplexa quanto estavas ao telefone? e parecerá, nesse minuto, que isso aconteceu há tantos anos que já ganhou o desbotado das coisas antigas. No segundo passo, quando souberes que a imagem quase fiel a ti está muito próxima de se transformar no reflexo alongado, darás as costas.Atravessarás a rua. Para ti, os jacarandás formarão passarela, enquanto molestarás a calçada com teu passo duro, ciente de que cansaste de um jogo que nem mesmo sabias, até então, estar participando. E quando chegares na esquina, verás o ir e vir das pessoas, e não estranharás que elas pareçam um tanto mais altas, distorcidas, as testas maiores do que todo o resto do rosto. Fecharás os olhos, e no cego movimento do teu corpo voltarás a compor o turbilhão a que sempre estiveste destinada.

Publicado na Antologia "Inventário das delicadezas", org. Charles Kiefer; ed. Nova Prova.

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